sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Quem é ele?


Nelson Gutierres Melgareijo, nasceu em Porto Alegre em 20 de agosto de 1958. Morador de rua há 15 anos do bairro cidade baixa. Nem sempre sua vida foi assim, vamos conhecê-lo.

Pararealidade: O que aconteceu na sua vida para você virar morador de rua?
Vários problemas. Eu perdi meu pai, um ano depois perdi minha mãe e depois de dois meses e onze dias perdi a Silvia, minha mulher. Tudo isso aconteceu em um curto prazo de tempo, acabou comigo.

Pararealidade: Você tem filhos? Onde moram?
Sim, tenho duas filhas. As duas moram com suas mães. Mães diferentes.

Pararealidade: Mas uma das mães não morreu?
Não. A que morreu era a titular a matriz. As filiais estão de pé até hoje, vivas, e as meninas vivem bem com elas.

Pararealidade: Elas visitam você? Ou você as visita?
De vez em quando. Não quero causar problemas emocionais na vida delas e nem na minha, porque sei que não tenho condições de dar nada para elas. Mas estou feliz porque sei que estão bem.

Pararealidade: Você tem irmãos?
Tinha quatro. Hoje tenho apenas um, ele mora em Florianópolis. Ele até me deu uma casinha para eu morar lá com ele, mas, com uma condição, que eu largasse a bebida. Preferi ficar com a bebida. Entre a minha garrafa e a casa eu prefiro ficar com a garrafa e morar nas ruas.

Pararealidade: Você já trabalhou? Onde?
Já trabalhei em vinte e duas empresas em Porto Alegre, dentre elas a Carris, Procergs, Polícia (GOE) e por aí vai.

Pararealidade: Por que você deixou de trabalhar?
Me envolvi com más companhias e conseqüentemente com as drogas. No GOE eu tinha um cargo importante. Meu irmão trabalhava no GOE em Santa Catarina. Um dia ele fez uma burrada e o tenente do GOE de Porto Alegre me enviou para eu prender o meu irmão. No mesmo momento eu deixei as armas em cima da mesa dele e disse que jamais iria fazer nada contra minha família, principalmente prender um irmão.

Pararealidade: Quando você não dorme na rua, onde você costuma dormir?
Peço abrigo em uma lanchonete em Ipanema, como já me conhecem, os donos me deixam tomar banho lá. Quando não vou para Ipanema durmo na rua mesmo e tomo banho com o pessoal do DMLU aqui na Cidade Baixa.

Pararealidade: No inverno, como você se aquece nas ruas?
Em primeiro lugar a minha namorada me ajuda muito, a cachaça claro. Depois um cobertor e um papelão por baixo. Eu não gosto muito desse lance de albergue, nunca entrou na minha cabeça.

Pararealidade: Por que você não gosta de albergues?
Muita abobrinha, muita bobagem, muitas leis lá dentro, muitas regras a serem cumpridas. Sai algumas brigas lá dentro, roubo é raro, mas sai também. Tem que chegar, tomar banho, depois tomar uma sopa muito ruim. Às 21 horas tem que estar na cama para as 5 da manhã acordar e tomar um café que é uma bosta. Tudo isso por causa de uma cama, quer dizer, um beliche que dorme um em cima do outro. Se for assim eu prefiro mil vezes dormir na rua.

Pararealidade: Quando você fica doente, como você se trata? E como compra remédios?
Eu tenho uma cunhada que é aposentada. Ela foi enfermeira padrão do Hospital de Clínicas. Ela me leva ao médico quando preciso e compra os meus remédios porque ela ganha descontos.

Pararealidade: Como você se alimenta? De onde tira dinheiro?
Eu não sinto muita fome, porque a bebida tira um pouco da vontade de comer. Geralmente eu ganho cachorro quente por aí. Eu consigo dinheiro fazendo meus biquinhos, vendo radinhos, relógios, fones e pilhas. Compro tudo mais barato no centro e revendo.


Pararealidade: Você poderia me contar uma experiência ruim que você viveu nas ruas?
São várias. Tenho uma marca na vista porque eu briguei com três cabeças de uma só vez. O cara tentou colocar a faca dentro do meu olho, só que pegou embaixo.

Pararealidade: E porque vocês estavam brigando?
V-U-L-N-E-R-A-B-I-L-I-D-A-D-E-S, ou seja, a cachaça fluiu, todo mundo ficou florido no caso, e eu fui tão macho que queria brigar com três.

Pararealidade: É verdade que os moradores de rua não tomam banho porque eles não querem que as pessoas se aproximem deles?
Não. Há moradores de rua que são relaxados e outros nem parecem que são. Mas há também a dificuldade do banho, principalmente no inverno. Como é que um morador de rua cheio de problemas, com frio, problemas no pulmão, friagem, vai tomar um banho gelado para ficar cheiroso. Nesses albergues é obrigado a tomar banho gelado. Então o morador de rua que fica no albergue, ele lava as axilas molha os cabelos só para dar uma enganada e poder dormir. Tem muita coisa errada aí que o pessoal finge que não vê. Vivemos em um mundo esquisito. Não é que não queremos que as pessoas se aproximem da gente, é que o pessoal (moradores de rua) ficam inibidos por causa do cheiro e da bebida. Tem moradores de rua que deixam de pegar ônibus e vão a pé para os lugares porque quando entram nos ônibus as pessoas ficam olhando e falando do mau cheiro. Aí nos isolamos na cabeça de vocês. Não é fácil.

Pararealidade: Como você se mantém informado?
Eu vejo Tv nos bares ou nas lanchonetes por onde passo. Eu gosto muito de ler o “Diarinho”, até porque ele me mantém informado, é bem baratinho e traz varias curiosidades.

Pararealidade: Você já leu algum livro?
Sim. O que mais me marcou foi Os Sobreviventes nos Andes. Um avião caiu nas cordilheiras dos Andes e o pessoal queimava dinheiro para se aquecer. Uns comiam os outros como canibais. Muito legal.

Pararealidade: Qual foi o filme que mais te marcou?
Tropa de Elite. Eu achei muito violento, não é bem assim que as coisas funcionam. Aprendi muitas coisas com esse filme. Uma delas é que cobra (marginais) não se fere, se mata, porque morto não fala.

Pararealidade: O que você carrega dentro da sua mochila? Dentre tantas coisas deixadas para trás como você selecionou essas?
Carrego o material que eu vendo. Na verdade dou prioridade e sempre carrego o que vou precisar mais no meu dia-a-dia. Coisas de primeira necessidade: dinheiro, documentos, algumas roupas. Tem também esse pedaço de carne crua que eu ganhei hoje de manhã de um açougue.

Pararealidade: Por que você não volta a trabalhar e ter um salário fixo?
Não tenho condições de assumir compromissos se eu não vou cumpri-los. Principalmente se eu trabalhar com amigos, não quero decepcionar ninguém.

Pararealidade: Você tem alguma religião?
Eu gosto muito da Espírita. É a mais branca, a mais bonita, a mais aberta e é a que melhor esclarece minhas dúvidas. Acredito muito em Deus também.
Pararealidade: Você tem algum medo de morar nas ruas?
O único medo que eu tenho é de pegar doenças. Uma conhecidíssima é a Aids. Tenho muito medo de me contaminar.

Pararealidade: Você é feliz?
Mentalmente e ideologicamente eu sou feliz. Não tenho horário, não tenho compromisso. Isso são duas coisas que eu admiro na vida. Eu sou livre.
Pararealidade: O que você acha da sociedade de hoje?
Em geral vivem em umas tocas, ninguém mais se relaciona com ninguém. Todo mundo tem medo de sair de casa. Deveriam se socializar mais. Isso não tem mais jeito, eles mesmos criaram esse mundo. Um mundo de grade, uma cadeia, uma cadeia urbana. A sociedade de hoje vive em cadeias urbanas. Eu me sinto feliz de não participar disso. Eu tenho o livre arbítrio de ir e vir à hora que eu quiser. Eu não preciso me preocupar com uma chave para entrar em um apartamento.

Pararealidade: Você tem algum sonho que gostaria de realizar ainda?
O que eu queria ter na vida agora com 50 anos eu já tive trabalhando. Sempre tive empregos bons, sempre entrei pela porta da frente. Já tive moto, carro, e um apartamento lindo no Menino Deus. A vida de hoje gira em torna da materialidade e eu não ligo mais para isso. Meu tempo, minha fase já passou. Vejo muita gente com dinheiro e que não é feliz, não vive a vida, não sai para jantar fora, é tudo uma rotina. Eles estão presos no mundo de grade deles.

* Fotos por Bruna Schuch.

12 comentários:

Carol disse...

Inacreditável o que esse cara pensa!

Eu nunca imaginei que fosse assim!

Tá demais a reportagem!!!

beijaoo!

Anitz

Dieines Fróis disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Dieines Fróis disse...

Como pode? A gente é quem exclui eles da sociedade e não eles que não nos deixam chegar perto.
E outra coisa, lendo a reportagem comecei a pensar e a descobrir que, muita coisa não é o que parece. Ou seja, o Linguinha, trabalhou muito na vida, mas a rasteira que ele levou dela mesma o fez chegar onde está. E o mais incrível dessa hostória de vida, é que ele é feliz com o que tem.
Muito Boa matéria!!!
Parabéns Bruna!
Beijos

Anônimo disse...

Bruna, achei a entrevista simplesmente maravilhosa. Conseguiu mostrar, com muita sensibilidade, um outro lado da realidade dos moradores de rua. Isso demonstra que as pessoas, muitas vezes, não estão ali por enfrentarem dificuldades, em grande parte financeiras, mas por optarem por esse caminho, um caminho em que TER não significa nada.

cari raupp disse...

É interessante ver um matéria com um morador de rua sem ser sensacionalista nem apelativa! Muito bom ver que o jornalismo pode servir apenas como uma janela que mostra a "pura" realidade. Foi isso que senti ao ler a matéria, que estava olhando pela janela!

p.s/ as fotos ficaram ótimas.

Anônimo disse...

Muitas pessoas de luxo se consideram inteligentes e ignoram os mais simples, porém, é na simplicidade vivida que se encontra o verdadeiro conhecimento e experiência válida para julgar a si e os outros.


Parabéns, Bruna. Ótima entrevista! Podemos fazer um documentário sobre ele, não?! hehe

beijos!!!

Bruna Schuch disse...

Sim, eu topo fazer um documentário sobre ele. Só estava faltando o convite. *hehehehe.

Prepara a sua filmadora.

Ninguém mandou convidar uma pessoa que, dificilmente, diria não ao seu convite. *rsrsrsrs.

Eduardo Nozari disse...

Vejo que todo o bando do rádio passou por aqui, hehe.

Também achei muito boa a entrevista e a iniciativa. Confesso que eu não teria a idéia de entrevistar um mendigo. E, se tivesse, provavelmente não ia executar.

As respostas do Nelson reforçam algo que eu já tinha ouvido falar, mas nunca assim em primeira pessoa: que vários mendigos têm essa vida por opção. Ok, talvez o Nelson não conseguisse mudar de vida de uma hora pra outra, se quisesse, mas ele claramente dá sinais de que prefere ser mendigo.

Também é interessante ver como ele não sustenta aquele estereótipo (preconceituoso) de que o mendigo é alguém sem cara, sem história. De que o mendigo nasceu mendigo.

No caso do Nelson parece que ele teve uma vida dita "normal" até uma certa altura e daí, em razão de uma série de problemas, caiu na pobreza. E infelizmente ele também parece cultuar, se orgulhar do vício pela bebida.

De qualquer modo, é muito difícil e inapropriado julgar pessoas nessas condições. Vai saber se faríamos algo diferente se estivéssemos no lugar deles...

Bruna Schuch disse...

Eduardo, você é uma figura.

Nessa matéria tive que dispor de tempo e principalmente de vontadade. Fiquei duas tardes inteiras conversando com ele. Cada minuto descobrindo algo novo.

Em uma dessas tardes choveu muito. Pude presenciar como é a correria para achar um lugar "seguro".

Obrigada pelo seu comentário e pela sua sinceridade.

Dieines Fróis disse...

Concerteza, fazer uma matéria com um morador de rua, (não gosto de falar mendigo) não deve ser nada fácil.
O fato de ele preferir a bebiba à um lar me choca. Creio que muitos dos moradores não estão ali por opção, como no caso dele, e queriam ter algum lugar "seu" pra morar.

Unknown disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Bruna Schuch disse...

Oi, Di!

No caso do Nelson, ele alega que gosta mutio da liberdade que tem vivendo nas ruas. Ele já está tão acostumado com a cachaça dele, que não larga ela por nada. É uma forma de esquecer tudo o que passou (temporariamente). Quando acaba o efeito da cachaça, ele bebe novamente.

Estou lendo um livro chamado "Cama de cimento" ( foi a Laura quem indicou). Acredite, existem muitos casos parecidos com o do Nelson.

beijos,

Xuki.