sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Série travestis - entrevista


Marcelly Malta tem 57 anos e nasceu no interior de Venâncio Aires. Veio para a capital tentar a vida porque era um menino discriminado pelas pessoas que o conheciam. Quando chegou à capital, conviveu com travestis que o incentivaram a seguir este caminho. Sem formação e perspectiva, começou a trabalhar na "caixa d'agua", local de prostituição de travestis na avenida 24 de Outubro. Conseguiu emprego na Santa Casa, mas a renda não era suficiente.

Malta sofreu perseguição logo após o governo Olívio Dutra, quando deu aulas de abordagem e direitos humanos para a academia de polícia do Estado. Ao fim do governo Olívio, foi presa (algumas autoridades da polícia militar não aceitavam que uma travesti os ensinasse como trabalhar) e conta histórias interessantíssimas desta época.

Hoje, Marcelly é a única travesti brasileira com emprego fixo, é servidora concursada da Secretaria Estadual de Saúde. É fundadora e dirige ainda hoje a ONG Igualdade, voltada ao combate do preconceito contra travestis e transexuais. Foi ainda a primeira travesti homenageada no Dia Internacional da Mulher pela Prefeitura de Porto Alegre, além de presidir o Conselho Municipal de Direitos Humanos.


pararealidade: Gostaria de saber um pouco da sua trajetória de vida, desde pequena até agora, e como foi sofrer várias transformações. Como tudo isso abalou sua vida?
Eu sou do interior de Venâncio Aires. No início, quando eu me descobri, eu sabia que era diferente. Tenho 57 anos e na época não tinha ninguém para conversar, nem com meu pai nem com a minha mãe, sobre a transformação do meu corpo, sobre o que eu gostava. Eu vim para Porto Alegre e logo eu conheci outras travestis que estavam na prostituição. Foi uma época muito difícil, porque ninguém sabia o que era uma travesti. Todos falavam “travesti operada”. As travestis que eu conheci na época trabalhavam na Santa Casa. Aí eu comecei a trabalhar na Santa Casa na parte de limpeza - isso de dia; de noite eu ia pra batalha. Nessa época eu ainda não tomava hormônio, aí as minhas amigas falavam que eu deveria tomar para ficar mais feminina, fazer a transformação. Fui me transformando em travesti aos poucos, fui descobrindo que o que eu queria era ser travesti e não transexual. Na época ninguém aceitava nós nos vestirmos de mulher, não podia andar de cabelo comprido, tinha que usar um boné. A Polícia Civil nos prendia porque achava vadiagem. Na época da ditadura foi muito difícil reconhecer quem tu é, o que tu gosta de ser, porque não tinha direitos humanos. Não tínhamos para a quem recorrer, alguém para falar sobre os direitos do travesti. Hoje temos tudo. Tínhamos que pagar propina para a polícia para podermos trabalhar.

pararealidade: Onde você morava?
Tínhamos que morar em cafetina e sofríamos exploração. Travesti tinha que pagar mais por moradia porque achavam que ganhávamos mais; então, tu morava em uma peça ou tu morava com uma travesti mais antiga.

pararealidade: Você poderia contar uma história marcante que viveu nas ruas?
Eu vivi todas as experiências ruins da rua. Uma coisa que eu questionava muito para os policiais era por que eu ia presa. Toda noite ia presa. Na época cheguei a pensar que eu estava errada e que eles estavam certos. Mas, ao longo do tempo, comecei a me questionar: eu não matei, eu não roubei, tenho documentos; por que tenho que ir presa?
Naquela época eu já tinha o meu dinheiro para pagar minhas contas e a polícia me batia muito, sem dó nem piedade. Se tu pudesse correr, tu corria, mas se não podia, eles te batiam. Essa foi a pior experiência que já tive.

pararealidade: Como você lida quando o assunto é a Aids? Porque no meio de vocês isso é muito comum; não é mesmo?
Logo no início a sociedade empurrou a Aids para as travestis, gays, prostitutas... a questão da epidemia da Aids. Eu ficava com medo, porque saía muito na mídia que era em relação à nossa classe de travestis, e os heterossexuais nunca eram mencionados. Nós começamos a nos questionar quando o Cazuza ficou com Aids. Aí, nós paramos e pensamos: “opa, isso não é uma doença só de travestis”. Quando eu comecei a me prostituir não existia camisinha, e eu usava meu corpo para ganhar dinheiro. Não tinha nem propaganda nacional, não se falava em prevenção, era uma experiência muito difícil porque eu trabalhava com 15 clientes por noite e todos sem camisinha. Era muito pouco divulgado e nós começamos a nos preocupar quando perdemos nossas primeiras companheiras, pessoas que foram morrendo por causa da epidemia da Aids. Hoje nós podemos falar abertamente sobre prevenção e há também programas nacionais que discutem muito isso. A única maneira de prevenir é usar camisinha, e na época não existia isso.

pararealidade: Onde você busca apoio?
Para nós travestis o apoio é muito pouco. Nos anos 60 e 70 tínhamos apoio dos próprios marginais que nós defendíamos. Hoje quem nos vê como inimigos é a sociedade, a maioria das vezes as travestis são excluídas das famílias, da sociedade e o governo não se preocupa muito com a visibilidade dos travestis. Eu, como presidente de uma ONG de travestis, procuro apoio nos direitos humanos, no Ministério Público, Ouvidoria, Secretaria de Justiça e Segurança. Nós temos os mesmos direitos que qualquer cidadão e cidadã. E na época nem pensávamos que poderíamos buscar esses direitos, onde procurá-los; nós pensávamos que eles não existiam.

pararealidade: Como vocês são tratadas no Sistema Único de Saúde?
Hoje, no Sistema Único de Saúde, conseguimos o direito de ser chamadas de a travesti, e não o travesti. Toda travesti tem o direito de ser tratada no feminino. O agente de saúde tem que me chamar pelo nome feminino. Em um lugar pode haver dez mulheres e uma travesti, mas quem irá chamar atenção é a travesti. Nós sempre estamos buscando respeito, dignidade, defender a questão das travestis. Não só porque somos travestis, mas também porque somos seres humanos como qualquer outro cidadão ou cidadã.

pararealidade: Como funciona sua atuação junto ao Conselho de Direitos Humanos?
Eu sou a presidente do Conselho de Direitos Humanos. Foi uma conquista, em primeiro lugar. Nós fazíamos parte como prostitutas, michês e travestis no contexto. Quando foi feita a eleição do Conselho de Direitos Humanos eu tive uma surpresa: fui indicada e a mais votada. Então, dentro do Conselho de Direitos Humanos, fica em nível nacional. Eu sou a única travesti no Brasil que é presidente de um Conselho Municipal de Direitos Humanos. Então, para nós, eu acho que toda a sociedade das travestis é importante, pois está inserida em todos os contextos. E eu também sou a vice-presidente do Comitê Estadual Contra a Tortura do Rio Grande do Sul. Isso também foi uma conquista muito grande, porque eu acho que a gente tem que estar inserido em tudo. Tem que ser metida, tem que ser forte. Não adianta tu querer reivindicar os teus direitos, tem que reivindicar os direitos dos outros também. Nós temos que lutar contra todos que estão dentro do conselho: índios, negros. É importante isso para uma travesti. Eu não quero só respeito pra mim; eu quero respeito para toda a população e não só para a população de travestis.

pararealidade: Tem algum caso interessante ou discussão em trâmite hoje no Conselho Municipal de Direitos Humanos?
Eu vejo muito a questão do índio, a posse, o poder, porque eles são muito discriminados. O movimento negro também. O desrespeito da brigada militar com os moradores de rua. E eles não estão lá porque querem, são pessoas fragilizadas e que hoje usam álcool e estão lá sem ter o que comer. A sociedade não quer ver isso.
A questão de direitos humanos falta muito ainda no “conselho municipal de direitos humanos”. Quando a gente fala, aí o pessoal diz: “Mas o que vocês querem? Vocês só defendem vagabundo, marginal.” Mas como a gente só defende marginal? A gente defende essa população porque é uma população fragilizada. Muitas vezes, se vocês forem para uma cidade do interior, verão uma travesti sendo algemada, espancada, tratada como marginal Não pode. Por que tu vai preso? Tu vai estar em uma esquina, parado, tendo documento... e a travesti vai presa como se fosse uma marginal. Nós não queremos isso. Só neste ano nós tivemos o encaminhamento de 37 denúncias de travestis ao Ministério Público por causa de violação de todos os direitos.

pararealidade: Como foi sua passagem pela academia de polícia? Quem a convidou? Como foi o preconceito dos policiais?
Foi no governo Olívio. Uma nova abordagem da brigada militar, polícia civil e corpo de bombeiros. Eu acho que foi importante como foi constituído esse projeto, “uma nova abordagem dos profissionais do sexo”. Teve aquele conflito de moradores de rua, travestis e prostitutas e então o governo fez esse projeto. Nesse projeto eu fui convidada para ser instrutora na academia de polícia. Tive um choque quando me ligaram. Eu me assustei porque a turma era muito grande, aproximadamente 150 alunos. Pensei que a turma da brigada militar seria a mais complicada, e para mim foi a mais fácil de lidar. Mas no mesmo instante eles tiveram um impacto. Como uma travesti vai conseguir falar sobre direitos humanos? Como vai ser essa abordagem? O que vocês querem? Foi uma experiência muito rica pra nós. Foi o melhor projeto que o Estado executou. Teve duração de dois anos e eu dava a disciplina de direitos humanos, duas vezes por semana.

pararealidade: E qual o motivo para o término desse projeto?
Deu problema porque saiu na mídia que uma travesti estava dando aulas na academia de policia. Mudou o governo e eu fui presa. Foi uma armação política. O coronel disse: “O que nós queremos com uma travesti dando aulas para a nossa instituição?”. Foi complicado porque eles não aceitavam. Fui presa quando mudou o governo para o do Rigoto; fiquei dez dias presa e não tinha nenhum fundamento a minha prisão. Mas foi provada pela minha advogada que não tinha nada a ver o que eles colocaram no processo para me prender. Foi uma armação.

pararealidade: E quais motivos eles alegaram para a sua prisão?
Exploração sexual, incentivo à prostituição e anexaram ao processo matérias sobre exploração infantil.

pararealidade: Você é a primeira travesti a ter emprego fixo no Brasil. Como você se sente sendo um exemplo para as outras travestis?
Eu penso nisso todo dia. Tudo tem um começo e um fim. Eu sou funcionária pública há 28 anos e acho que as travesti pensam que elas não têm o direito de trabalhar. Em um concurso público ta lá escrito: sexo - feminino ou masculino, mas não diz lá o gênero, o que você é e o que não é. Quando eu passei, eu levei um ano pensando se eu ia ou não ia assumir meu cargo dentro do Estado. É difícil, mas todos têm que ir à luta.

pararealidade: Como podemos entrar em contato com você?
Nós ainda não temos site nem telefone, mas temos o nosso e-mail: aigualdade@bol.com.br. Esse espaço que nós temos aqui agora é metade conselho e metade igualdade. Foi cedido pela Prefeitura de Porto Alegre.

* Para quem quiser conferir mais uma matéria com Marcelly Malta, ou, para quem quiser saber quais são as difernças entre Travestis e Transexuais, clique aqui.


* Foto retirada do google.

10 comentários:

Dieines Fróis disse...

Bruna!
Muito boa a matéria, ela tem conteúdo! Tu a lê do início ao fim, não cansa.
O que a Marcelly diz a respeito dos policiais infelizmente sabemos que é verdade, e não só com travestis, moradores de rua, pobres, negros e por ai vai.
Isso é uma coisa que me irrita nesse país, as pessoas que deveriam nos proteger, nos maltratam. Digo nós, mas a nossa classe é privilegiada, infelizmente é assim.
Quanto a questão do preconceito, como já comentei na matéria anterior, existe e acredito que nunca ira desaparecer. Cada vez as pessoas são mais preconceituosas. Isto parte de cada um.
Imagina se já é difícil de mudar o nosso próprio pensamento, quem dirá o dos outros.

Bruna Schuch disse...

Oi, Di!

Obrigada.

É... o preconceito existe sim, e muito! com as travestis é muito pior na minha opinião.

Estava até pensando em fazer uma enquete para o meu blog. Se as pessoas acham que no futuro o preconceito vai diminuir ou aumentar, algo assim.

Preciso ver como se faz uma primeiro..*rsrsrs. Vou deixar essa enquete para o post da Bruna.

Será que um dia a sociedade não vai mais se importar em ver casais homos nas ruas?? e travestis também??

beijos.

Xuki.

Thaise Hoyler disse...

Oi, Bruninha!
Vi a "propaganda" do seu blog no seu orkut, resolvi entrar. Fiquei surpresa porque você é muito "palhaça" e está realmente mostrando o seu outro "eu".

Achei a matéria muito interessante. É bacana ver pessoas como a Marcelly, que acreditam e lutam por uma causa, e não se deixam abater pelas tormentas do caminho.

Eu não sou uma pessoa preconceituosa, o que não gosto é de baixaria. Seja ela protagonizada por homens, mulheres, gays e afins.

Por isso, da maneira como a Marcelly se porta e o ideal que ela defende, os benefícios que ela busca para os outros - e não apenas em causa própria, são atitudes muito louváveis e dignas de admirãção e respeito por parte das outras pessoas.

Acredito que o que precisa acontecer é uma mudança interna, as pessoas se aceitarem verdadeiramente como são - e não viverem como a maioria, numa hipocrisia utópica, onde tudo é cor-de-rosa. As pessoas precisam se aceitar e se assumir. Com isso, o preconceito diminui automaticamente. É preciso mais amor, mais respeito entre as pessoas. O resto é conseqüência.

Giovana disse...

Bah Bruna a matéria ficou muito boa, na minha opinião
Vai ser difícil a sociedade "aceitar" ou deixar de se impressionar em ver casais homossexuais e travestis pois esta ignorância é predominante, enquanto a igreja não aceitar, as crianças não tiverem educação, enquanto as pessoas não tiverem condições mínimas de sobrevivência, muitos preconceitos não poderão ser quebrados, sendo que o sistema financeiro é baseado nas diferença entre as classes.

Bruna Schuch disse...

Muito bem colocado Gi!

Meus pensamentos não estavam seguindo essa linha de raciocínio.

Obrigada por colaborar!

beijos,

Xuki.

Carol disse...

Bru, como sempre tuas matérias são ótimas, a gente não quer parar de ler!
Que bom que tu consegue mostrar este lado da sociedade com tanto realismo, mas ao mesmo tempo com tanta suavidade e acessibilidade para as pessoas que não participam dele.
Preconceito é algo que a sociedade ainda vai demorar pra vencer, não só no caso da Marcelly, mas de homossexuais, etc.

beijo grande!

Bruna Schuch disse...

Nossa, obrigada Ana. Até me senti importante agora. *rsrsrs.

Praticamente todas as pessoas que comentaram aqui, acham que não vai acabar o lance do preconceito. Quem sabe então em um futuro prolongado...tipo 30 anos?!!

Se antigamente sexo antes do casamento era uma aberração e agora não é mais...porque isso não pode mudar também?!

Até porque, a geração dos nossos pais pensavam de uma maneira bem diferente,mas, essa geração que está vindo agora, já pensa com outra cabeça. E é essa geração que irá predominar no futuro.

Alguém concorda comigo?

Dieines Fróis disse...

Bruna, concordo com que a Ana disse sobre como tu escreve. Já ao teu comentário...
Concordo em partes... sim com certeza daqui 30 anos as gerações serão completamente diferentes, mas o preconceito não muda.
Sempre vai existir pessoas que se acham superiores ao outros por serem "normaiS"...
Digo normais entre aspas, porque acredito na idéia de que cada um tem o seu, digamos assim, sentido de normal...
Cada um sabe o que é o certo e o errado de cada um.
Concordo quando tu colocas a questão do sexo no casamento, sim hoje é normal, mas quantos anos se levou para que isso se tornasse normal, para alguns.
Mais ou menos como hoje, sexo na adolescência; até bem pouco tempo era um assunto polêmico, porque não é mais, acredito que seja questão de costume, de tanto as pessoas falarem, baterem naquela tecla, elas simplesmente se acostumam e fica tudo no seu normal.

Bruna Schuch disse...

Obrigada pelos pensamentos Di.

Sabe, também acho dificil de mudar!!

O que escrevi anteriormente foi um ponto de vista somente.

beijão.

Xuki

Júlia disse...

tá ótima a entrevista! que incrível tu ter achado essa travesti. parabéns!

tem uma frase que eu acho que eu acho que tá errada:
"Nós temos que lutar contra todos que estão dentro do conselho: índios, negros. É importante isso para uma travesti. Eu não quero só respeito pra mim; eu quero respeito para toda a população e não só para a população de travestis."

é na pergunta sobre os direitos humanos. pq assim dá a entender que ela tem que lutar contra os índios e negros, e na verdade ela luta a favor deles, não?

mas, enfim. tá incrível a matéria e o blog em geral!

beijos!