sexta-feira, 21 de novembro de 2008

PROMOÇÃO!!!!!!!

Envie uma frase para o e-mail pararealidade@gmail.com . Respondendo:


Se você fosse um dos personagens desse blog, quem você seria e por quê?


O autor da melhor resposta ganhará uma camiseta do pararealidade. Não esqueça de enviar no final do e-mail o tamanho de sua camiseta.



quarta-feira, 19 de novembro de 2008

O tradicional vendedor ambulante do parque da Redenção.


Quando eu era pequena sempre passava por ele e ficava admirando os seus balões. Jamais imaginei que 15 anos depois eu iria entrevistá-lo, muito menos que ele ainda estaria vivo.

Na época ele vendia bolas gigantescas que uma criança mal conseguia segurar. Lembro que em uma tarde, minha mãe comprou um de seus balões. Era um peixe enorme, mais parecia uma carpa. Tinha tanto gás que ele flutuava contra o céu azul. Ele amarrou o barbante no meu pulso e eu voltei saltitante para casa.

Tudo isso durou pouco, o barbante soltou do meu pulso e o peixe foi voando em direção a uma árvore e logo depois para o céu. Eu gritava e chorava: - Mamãeeeeee...pega um avião e vai buscar meu peixe, não quero que ele nade no céu. Ele não sabe nadar no céu, ele vai MORRERRRR.

Gentilmente minha mãe se abaixou para ficar do meu tamanho (sim, já fui baixinha um dia), passou a mão na minha cabeça e falou: - Calma Bruna, domingo que vem te dou outro balão.

Minha mãe não entendia o que aquele peixe, em poucos minutos, representou na minha vida *rsrsrs, - crianças sempre exageram um pouco - e eu entendia muito menos quando seria domingo que vem. Eu estava programando altos papos com ele quando chegasse em casa. Assim ela (minha mãe) poderia ler o seu jornal sem a minha interferência, e eu conversar com meu amigo peixe em paz.

E assim, fomos caminhando devagar em direção a nossa casa, em um domingo quente de verão, com a brisa batendo em nossos rostos. Logo eu troquei meu amigo peixe por um delicioso sorvete.

Juares da Silva Oliveira, 76 anos, nasceu em Porto Alegre e com apenas três anos de idade perdeu sua mãe. Seu pai casou-se novamente. Por isso, estudou somente até a terceira série, tendo que parar para poder trabalhar. Há 59 anos está na Redenção atuando como vendedor de balões. Juares garante ser o primeiro morador de rua de Porto Alegre, em 1946; ele dormia sozinho no viaduto da Borges de Medeiros com apenas 14 anos.


Pararealidade: Quanto tempo você trabalha com balões?
R: Há 59 anos. Comecei com 17 anos na parte dos macaquinhos da redenção. Lá do outro lado. Era onde havia a maior concentração de crianças.

Pararealidade: Com o que você trabalhava antes de trabalhar com balões?
R: Já trabalhei em uma fábrica de vidro, fábrica de calçados. Em uma dessas fábricas eu fui despedido porque um colega meu veio brigar comigo de faca, me cortou e eu sangrei muito. O dono da fábrica disse que iria demitir o agressor e eu porque sangrei. Vê se pode.

Pararealedade: Como surgiu a idéia de trabalhar com balões?
R: Essa idéia surgiu porque eu via que dava dinheiro.

Pararealidade: Qual o seu faturamento diário?
R: Eu consigo tirar um salário mínimo e meio por domingo. Quando chove é um caos porque deixo de ganhar.

Pararealidade: O que o senhor faz durante a semana? Trabalha em outro lugar?
R: Durante a semana eu dedico o meu tempo na fabricação de cata ventos para vender aos domingos.

Pararealidade: Você tem família? Filhos? Quantos ajudam você aqui na redenção?
R: Sim. Tenho mulher e ao todo são 15 filhos vivos. Uns quatro somente ajudam aqui.

Pararealidade: Dá para sustentar todos da sua família e conseguir sobreviver ao mesmo tempo?
R: Antigamente eu ganhava muito mais. Hoje as vendas caíram 80%, mesmo assim, vale a pena. Agora tenho filhos maiores, alguns já trabalham e já constituíram famílias. Fico triste porque só um vai conseguir se formar no colégio, os outros abandonaram. Eu continuo com esse negócio porque não vou conseguir arrumar outro serviço.


Pararealidade: Se o senhor não trabalhasse com balões, com o que gostaria de trabalhar?
R: Com essa idade que eu estou agora, acho que eu deveria montar uma fruteira para mim e parar um pouco de trabalhar na rua e de viajar.

Pararealidade: O senhor costuma trabalhar com os seus balões em outros lugares sem ser a redenção?
R: Sim. Na festa da uva, festa da soja, festa do vinho, expointer. Teve uma época que na feira da uva e na do vinho consegui ganhar 130 mil reais. Eu sempre fui muito festeiro, gastei tudo com churrasco, convidei muitas pessoas.

Pararealidade: Mas porque o senhor não guardou todo esse dinheiro para garantir um futuro melhor?
R: Toda vida fui festeiro. Eu tendo dinheiro é churrasco e festa pra todo mundo. Não adianta nada ficar com dinheiro, a gente vai morrer e não vai levar nada. Vou deixar para meus filhos brigarem?? é melhor gastar, comer, beber e se divertir.

Pararealidade: Você paga alguma coisa para ficar na redenção?
R: Absolutamente, nada.

Pararealidade: Como o senhor faz para transportar esse carrinho cheio de balões? R: Esse carrinho eu guardo na Venâncio Aires. Ali tem uma farmácia. Nos fundos da farmácia, do lado, tem um lugar que guarda carros e eu guardo o meu ali. Faz quatro anos que guardo meu carro ali e nunca deu nenhum tipo de problema. Pago 75 reais por mês.

Pararealidade: Qual a idade das crianças que compram os seus balões?
R: Tem crianças de um ano e meio de idade que passa e já pede para os pais. Então eu diria de um ano e meio de idade até crianças de 12 anos.

Pararealidade: Qual a média de preço dos balões?
R: Nós vendemos os mais simples por 10 reais, no shopping eles vendem por 20, 25 reais. O que eu vendo muito são os cata ventos. É uma fabricação minha, em média custam quatro reais, depende do cata vento. Se eu pegar uma garrafa de pepsi eu consigo fabricar dois cata ventos e lucro em torno de oito reais. O cata vento de plástico é mais resistente, não arrebenta.

Pararealidade: Qual o balão que mais vende?
R: O avião da TAM vende muito. Depois o Homem Aranha e a Moranguinho.

Pararealidade: Quais os meses que mais te dão lucro?
R: De Maio a Outubro, principalmente no dia das crianças. O movimento para um pouco nas férias. Procuro ir para a praia trabalhar.

* AVISO: É terminantemente proibido roubar as fotos deste blog sem autorização prévia. Caso você ouse fazer isso, você terá um repentino aneurisma cerebral...em...5...4....3...2...1 . Prazer em conhecê-lo.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Série travestis - uma nova perspectiva

Maria Berenice Dias, ex-desembargadora e hoje advogada, nos conta
neste vídeo histórias interessantíssimas sobre casos homoafetivos que
já defendeu e demonstra ser uma pessoa muito acessível, sem se
preocupar com o preconceito da sociedade.

Não deixem de conferir o vídeo "Entrevista com Maria Berenice Dias" -
ele encerra a série travestis do pararealidade




* Editado por Dieines Fróis.

* Fotos de Maria Berenice Dias, clique aqui.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Série travestis - enfrentando o preconceito


Bruna Torres nasceu no interior do Rio Grande do Sul. Aos 22 anos mudou-se para Porto Alegre. Tornou-se travesti aos 15 e na mesma época passou a tomar hormônios. Ao completar 18 anos começou um curso de cabeleireira, que a ajudou no que é hoje, pois trabalha em uma estética durante o dia e à noite como profissional do sexo. Além disso, ela tem um anúncio na Zero Hora dominical, através do qual atende seus clientes em um lugar próprio. Bruna possui um blog onde deposita fotos eróticas, e o nome que utiliza para exercer essa profissão é Camila Oliver.

Pararealidade: Como você descobriu que era diferente dos demais?
Foi na época de colégio, quando eu comecei a gostar de um menino. Na minha cabeça eu não tinha nada formado sobre o que era certo e o que era errado, mas eu sabia que era diferente, porque pelas conversas que eu ouvia de mãe e de parentes aquilo era estranho. Na minha rua tinha um homossexual já de mais idade e eu tinha apenas 11 para 12 anos e achava que não era errado. Na época eu já gostava de um menino do colégio.

Pararealidade: Você já sofreu abuso sexual?
Sim, duas vezes. Uma foi bem curiosa, porque aconteceu na delegacia de polícia na minha cidade natal, Rio Pardo, conhecida por todos, histórica pela famosa Sexta-feira Santa e pela igreja também. Eu fui chamada ao passar pela calçada. O cara me levou para dentro da delegacia, acho que ele não era delegado. Aí, abriu a calça e me obrigou a fazer sexo oral nele. Como eu deveria ter meus 12, 13 anos, nunca contei aquilo para ninguém. Não fiz queixa, não fiz nada porque eu nem imaginava que fosse possível. E, passado um tempo, sofri abuso mesmo: eu estava saindo do cinema e - sabe como é cidade do interior - fui cortar caminho por dentro de um campo. Aí um cara me pegou a força, me fez fazer sexo com ele a força. Foram essas as duas vezes. Isso aconteceu quando eu era adolescente, menor de idade, tudo ficou em segredo comigo. Hoje em dia isso não acontece mais. Impossível. Ninguém mais pega uma travesti a força. Eu era um adolescente, crianças correm todos os tipos de perigo, como se vê todo dia em notícias na TV e nos jornais.

Pararealidade: Como você reage quando o assunto é Aids? Você tem algum receio?
Sim. Eu venho da época em que iniciou. Quando começou, na década de 80, eu me reunia na esquina com os meus amigos gays (na época eu não era travesti ainda, eu era gay), e começamos a ouvir notícias de que em são Francisco surgia o câncer gay - era assim que chamavam. Eu presenciei todo o processo da Aids.

Pararealidade: Você já teve amigas que morreram por estar com o HIV?
Várias. Houve uma geração de travestis mais antigas e a grande maioria morreu por causa do HIV. Hoje, travestis na faixa de 40 a 50 anos são muito poucas.

Pararealidade: Os teus clientes costumam pedir o seu teste de HIV antes de fazerem o programa?
Os clientes costumam perguntar se nos cuidamos, mas sempre faço os programas usando preservativo. Faço o teste do HIV uma vez por ano, geralmente é em dezembro.

Pararealidade: Como é o dia-a-dia de uma travesti, hoje? O que poderia mudar?
O que realmente poderia mudar o nosso dia-a-dia é se houvesse mais leis que abrangessem esse tipo de público. Porque é muito fácil tu ser gay e ser lésbica. Até em salão existe o preconceito. A cliente adora ser atendida por um gay de cavanhaque, bem fresco, bem desmunhecado. Se ela chega no salão e vê uma travesti, com peito, bunda, silicone e com marquinha de biquíni, já tem problema. Se ela não é cliente, se ela é nova, muitas olham meio atravessado. Começam com muitas curiosidades em cima. Elas não se preocupam se você é boa no seu trabalho, elas se preocupam com a tua vida. Com quem tu sai, com quem tu dorme, transa, como é que tu vive, se tu operou, se tu não operou. Esse tipo de informação não chega à casa das pessoas. Quando uma novela mostra uma travesti, mostra um ator de peruca vestido de mulher, sempre caricato. Todo tipo de trabalho na TV que mostrou travestis mostrou um ator vestido de mulher, e na verdade não é isso. Eu sou assim da hora que acordo até a hora de dormir. Eu não me monto.

Pararealidade: Como você reage ao preconceito da sociedade?
A cada dia a gente mata um leão para viver. Essa é a verdade da travesti. Hoje, o preconceito da sociedade funciona assim: se eu estiver em um lugar público e sofrer preconceito, eu sei que tenho os meus direitos a procurar. Posso fazer uma ocorrência policial, posso ir ao Ministério Público, hoje em dia eu sei disso. Mas o preconceito se mostra no dia-a-dia sempre. Se alguém falar algum dia que o preconceito diminuiu, não é verdade. Existe em todo local.

Prarealidade: E você acha que daqui a dez anos isso vai melhorar?
Não, se continuar como está hoje, acredito que não. As ONGS lutam, nós nos reunimos, fazemos pontos por nossos direitos. Mas fora daquela sala as coisas não andam.

Pararealidade: Quais são seus projetos futuros?
Dentro da ONG eu participo de vários encontros regionais e nacionais. A nossa luta sempre abrange o preconceito, esse é sempre o grande problema. Seja dentro de casa, agressões por policiais... O outro grande preconceito que eu acho que se torna um pouquinho esquecido é quanto ao portador de HIV, a pessoa soropositivo tendo que viver com a Aids. Aí vem um preconceito imenso. Eu trabalho dentro de uma estética, com pessoas de classe média alta, e toda vez que se toca no assunto que o tal cabeleireiro está com HIV, aquele cabeleireiro perde a clientela. Se vê um gay ou uma travesti fazer a tua unha, já surgem as perguntas se tudo é bem esterilizado. Claro, tudo é bem limpo, mas sempre as pessoas ficam preocupadas com isso. Então, quem é soropositivo ainda sofre muito preconceito e aí está um dos nossos trabalhos: enfrentar esse tipo de preconceito.

* Foto retirada do blog pessoal de Bruna Torres.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Série travestis - entrevista


Marcelly Malta tem 57 anos e nasceu no interior de Venâncio Aires. Veio para a capital tentar a vida porque era um menino discriminado pelas pessoas que o conheciam. Quando chegou à capital, conviveu com travestis que o incentivaram a seguir este caminho. Sem formação e perspectiva, começou a trabalhar na "caixa d'agua", local de prostituição de travestis na avenida 24 de Outubro. Conseguiu emprego na Santa Casa, mas a renda não era suficiente.

Malta sofreu perseguição logo após o governo Olívio Dutra, quando deu aulas de abordagem e direitos humanos para a academia de polícia do Estado. Ao fim do governo Olívio, foi presa (algumas autoridades da polícia militar não aceitavam que uma travesti os ensinasse como trabalhar) e conta histórias interessantíssimas desta época.

Hoje, Marcelly é a única travesti brasileira com emprego fixo, é servidora concursada da Secretaria Estadual de Saúde. É fundadora e dirige ainda hoje a ONG Igualdade, voltada ao combate do preconceito contra travestis e transexuais. Foi ainda a primeira travesti homenageada no Dia Internacional da Mulher pela Prefeitura de Porto Alegre, além de presidir o Conselho Municipal de Direitos Humanos.


pararealidade: Gostaria de saber um pouco da sua trajetória de vida, desde pequena até agora, e como foi sofrer várias transformações. Como tudo isso abalou sua vida?
Eu sou do interior de Venâncio Aires. No início, quando eu me descobri, eu sabia que era diferente. Tenho 57 anos e na época não tinha ninguém para conversar, nem com meu pai nem com a minha mãe, sobre a transformação do meu corpo, sobre o que eu gostava. Eu vim para Porto Alegre e logo eu conheci outras travestis que estavam na prostituição. Foi uma época muito difícil, porque ninguém sabia o que era uma travesti. Todos falavam “travesti operada”. As travestis que eu conheci na época trabalhavam na Santa Casa. Aí eu comecei a trabalhar na Santa Casa na parte de limpeza - isso de dia; de noite eu ia pra batalha. Nessa época eu ainda não tomava hormônio, aí as minhas amigas falavam que eu deveria tomar para ficar mais feminina, fazer a transformação. Fui me transformando em travesti aos poucos, fui descobrindo que o que eu queria era ser travesti e não transexual. Na época ninguém aceitava nós nos vestirmos de mulher, não podia andar de cabelo comprido, tinha que usar um boné. A Polícia Civil nos prendia porque achava vadiagem. Na época da ditadura foi muito difícil reconhecer quem tu é, o que tu gosta de ser, porque não tinha direitos humanos. Não tínhamos para a quem recorrer, alguém para falar sobre os direitos do travesti. Hoje temos tudo. Tínhamos que pagar propina para a polícia para podermos trabalhar.

pararealidade: Onde você morava?
Tínhamos que morar em cafetina e sofríamos exploração. Travesti tinha que pagar mais por moradia porque achavam que ganhávamos mais; então, tu morava em uma peça ou tu morava com uma travesti mais antiga.

pararealidade: Você poderia contar uma história marcante que viveu nas ruas?
Eu vivi todas as experiências ruins da rua. Uma coisa que eu questionava muito para os policiais era por que eu ia presa. Toda noite ia presa. Na época cheguei a pensar que eu estava errada e que eles estavam certos. Mas, ao longo do tempo, comecei a me questionar: eu não matei, eu não roubei, tenho documentos; por que tenho que ir presa?
Naquela época eu já tinha o meu dinheiro para pagar minhas contas e a polícia me batia muito, sem dó nem piedade. Se tu pudesse correr, tu corria, mas se não podia, eles te batiam. Essa foi a pior experiência que já tive.

pararealidade: Como você lida quando o assunto é a Aids? Porque no meio de vocês isso é muito comum; não é mesmo?
Logo no início a sociedade empurrou a Aids para as travestis, gays, prostitutas... a questão da epidemia da Aids. Eu ficava com medo, porque saía muito na mídia que era em relação à nossa classe de travestis, e os heterossexuais nunca eram mencionados. Nós começamos a nos questionar quando o Cazuza ficou com Aids. Aí, nós paramos e pensamos: “opa, isso não é uma doença só de travestis”. Quando eu comecei a me prostituir não existia camisinha, e eu usava meu corpo para ganhar dinheiro. Não tinha nem propaganda nacional, não se falava em prevenção, era uma experiência muito difícil porque eu trabalhava com 15 clientes por noite e todos sem camisinha. Era muito pouco divulgado e nós começamos a nos preocupar quando perdemos nossas primeiras companheiras, pessoas que foram morrendo por causa da epidemia da Aids. Hoje nós podemos falar abertamente sobre prevenção e há também programas nacionais que discutem muito isso. A única maneira de prevenir é usar camisinha, e na época não existia isso.

pararealidade: Onde você busca apoio?
Para nós travestis o apoio é muito pouco. Nos anos 60 e 70 tínhamos apoio dos próprios marginais que nós defendíamos. Hoje quem nos vê como inimigos é a sociedade, a maioria das vezes as travestis são excluídas das famílias, da sociedade e o governo não se preocupa muito com a visibilidade dos travestis. Eu, como presidente de uma ONG de travestis, procuro apoio nos direitos humanos, no Ministério Público, Ouvidoria, Secretaria de Justiça e Segurança. Nós temos os mesmos direitos que qualquer cidadão e cidadã. E na época nem pensávamos que poderíamos buscar esses direitos, onde procurá-los; nós pensávamos que eles não existiam.

pararealidade: Como vocês são tratadas no Sistema Único de Saúde?
Hoje, no Sistema Único de Saúde, conseguimos o direito de ser chamadas de a travesti, e não o travesti. Toda travesti tem o direito de ser tratada no feminino. O agente de saúde tem que me chamar pelo nome feminino. Em um lugar pode haver dez mulheres e uma travesti, mas quem irá chamar atenção é a travesti. Nós sempre estamos buscando respeito, dignidade, defender a questão das travestis. Não só porque somos travestis, mas também porque somos seres humanos como qualquer outro cidadão ou cidadã.

pararealidade: Como funciona sua atuação junto ao Conselho de Direitos Humanos?
Eu sou a presidente do Conselho de Direitos Humanos. Foi uma conquista, em primeiro lugar. Nós fazíamos parte como prostitutas, michês e travestis no contexto. Quando foi feita a eleição do Conselho de Direitos Humanos eu tive uma surpresa: fui indicada e a mais votada. Então, dentro do Conselho de Direitos Humanos, fica em nível nacional. Eu sou a única travesti no Brasil que é presidente de um Conselho Municipal de Direitos Humanos. Então, para nós, eu acho que toda a sociedade das travestis é importante, pois está inserida em todos os contextos. E eu também sou a vice-presidente do Comitê Estadual Contra a Tortura do Rio Grande do Sul. Isso também foi uma conquista muito grande, porque eu acho que a gente tem que estar inserido em tudo. Tem que ser metida, tem que ser forte. Não adianta tu querer reivindicar os teus direitos, tem que reivindicar os direitos dos outros também. Nós temos que lutar contra todos que estão dentro do conselho: índios, negros. É importante isso para uma travesti. Eu não quero só respeito pra mim; eu quero respeito para toda a população e não só para a população de travestis.

pararealidade: Tem algum caso interessante ou discussão em trâmite hoje no Conselho Municipal de Direitos Humanos?
Eu vejo muito a questão do índio, a posse, o poder, porque eles são muito discriminados. O movimento negro também. O desrespeito da brigada militar com os moradores de rua. E eles não estão lá porque querem, são pessoas fragilizadas e que hoje usam álcool e estão lá sem ter o que comer. A sociedade não quer ver isso.
A questão de direitos humanos falta muito ainda no “conselho municipal de direitos humanos”. Quando a gente fala, aí o pessoal diz: “Mas o que vocês querem? Vocês só defendem vagabundo, marginal.” Mas como a gente só defende marginal? A gente defende essa população porque é uma população fragilizada. Muitas vezes, se vocês forem para uma cidade do interior, verão uma travesti sendo algemada, espancada, tratada como marginal Não pode. Por que tu vai preso? Tu vai estar em uma esquina, parado, tendo documento... e a travesti vai presa como se fosse uma marginal. Nós não queremos isso. Só neste ano nós tivemos o encaminhamento de 37 denúncias de travestis ao Ministério Público por causa de violação de todos os direitos.

pararealidade: Como foi sua passagem pela academia de polícia? Quem a convidou? Como foi o preconceito dos policiais?
Foi no governo Olívio. Uma nova abordagem da brigada militar, polícia civil e corpo de bombeiros. Eu acho que foi importante como foi constituído esse projeto, “uma nova abordagem dos profissionais do sexo”. Teve aquele conflito de moradores de rua, travestis e prostitutas e então o governo fez esse projeto. Nesse projeto eu fui convidada para ser instrutora na academia de polícia. Tive um choque quando me ligaram. Eu me assustei porque a turma era muito grande, aproximadamente 150 alunos. Pensei que a turma da brigada militar seria a mais complicada, e para mim foi a mais fácil de lidar. Mas no mesmo instante eles tiveram um impacto. Como uma travesti vai conseguir falar sobre direitos humanos? Como vai ser essa abordagem? O que vocês querem? Foi uma experiência muito rica pra nós. Foi o melhor projeto que o Estado executou. Teve duração de dois anos e eu dava a disciplina de direitos humanos, duas vezes por semana.

pararealidade: E qual o motivo para o término desse projeto?
Deu problema porque saiu na mídia que uma travesti estava dando aulas na academia de policia. Mudou o governo e eu fui presa. Foi uma armação política. O coronel disse: “O que nós queremos com uma travesti dando aulas para a nossa instituição?”. Foi complicado porque eles não aceitavam. Fui presa quando mudou o governo para o do Rigoto; fiquei dez dias presa e não tinha nenhum fundamento a minha prisão. Mas foi provada pela minha advogada que não tinha nada a ver o que eles colocaram no processo para me prender. Foi uma armação.

pararealidade: E quais motivos eles alegaram para a sua prisão?
Exploração sexual, incentivo à prostituição e anexaram ao processo matérias sobre exploração infantil.

pararealidade: Você é a primeira travesti a ter emprego fixo no Brasil. Como você se sente sendo um exemplo para as outras travestis?
Eu penso nisso todo dia. Tudo tem um começo e um fim. Eu sou funcionária pública há 28 anos e acho que as travesti pensam que elas não têm o direito de trabalhar. Em um concurso público ta lá escrito: sexo - feminino ou masculino, mas não diz lá o gênero, o que você é e o que não é. Quando eu passei, eu levei um ano pensando se eu ia ou não ia assumir meu cargo dentro do Estado. É difícil, mas todos têm que ir à luta.

pararealidade: Como podemos entrar em contato com você?
Nós ainda não temos site nem telefone, mas temos o nosso e-mail: aigualdade@bol.com.br. Esse espaço que nós temos aqui agora é metade conselho e metade igualdade. Foi cedido pela Prefeitura de Porto Alegre.

* Para quem quiser conferir mais uma matéria com Marcelly Malta, ou, para quem quiser saber quais são as difernças entre Travestis e Transexuais, clique aqui.


* Foto retirada do google.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Quem é ele?


Nelson Gutierres Melgareijo, nasceu em Porto Alegre em 20 de agosto de 1958. Morador de rua há 15 anos do bairro cidade baixa. Nem sempre sua vida foi assim, vamos conhecê-lo.

Pararealidade: O que aconteceu na sua vida para você virar morador de rua?
Vários problemas. Eu perdi meu pai, um ano depois perdi minha mãe e depois de dois meses e onze dias perdi a Silvia, minha mulher. Tudo isso aconteceu em um curto prazo de tempo, acabou comigo.

Pararealidade: Você tem filhos? Onde moram?
Sim, tenho duas filhas. As duas moram com suas mães. Mães diferentes.

Pararealidade: Mas uma das mães não morreu?
Não. A que morreu era a titular a matriz. As filiais estão de pé até hoje, vivas, e as meninas vivem bem com elas.

Pararealidade: Elas visitam você? Ou você as visita?
De vez em quando. Não quero causar problemas emocionais na vida delas e nem na minha, porque sei que não tenho condições de dar nada para elas. Mas estou feliz porque sei que estão bem.

Pararealidade: Você tem irmãos?
Tinha quatro. Hoje tenho apenas um, ele mora em Florianópolis. Ele até me deu uma casinha para eu morar lá com ele, mas, com uma condição, que eu largasse a bebida. Preferi ficar com a bebida. Entre a minha garrafa e a casa eu prefiro ficar com a garrafa e morar nas ruas.

Pararealidade: Você já trabalhou? Onde?
Já trabalhei em vinte e duas empresas em Porto Alegre, dentre elas a Carris, Procergs, Polícia (GOE) e por aí vai.

Pararealidade: Por que você deixou de trabalhar?
Me envolvi com más companhias e conseqüentemente com as drogas. No GOE eu tinha um cargo importante. Meu irmão trabalhava no GOE em Santa Catarina. Um dia ele fez uma burrada e o tenente do GOE de Porto Alegre me enviou para eu prender o meu irmão. No mesmo momento eu deixei as armas em cima da mesa dele e disse que jamais iria fazer nada contra minha família, principalmente prender um irmão.

Pararealidade: Quando você não dorme na rua, onde você costuma dormir?
Peço abrigo em uma lanchonete em Ipanema, como já me conhecem, os donos me deixam tomar banho lá. Quando não vou para Ipanema durmo na rua mesmo e tomo banho com o pessoal do DMLU aqui na Cidade Baixa.

Pararealidade: No inverno, como você se aquece nas ruas?
Em primeiro lugar a minha namorada me ajuda muito, a cachaça claro. Depois um cobertor e um papelão por baixo. Eu não gosto muito desse lance de albergue, nunca entrou na minha cabeça.

Pararealidade: Por que você não gosta de albergues?
Muita abobrinha, muita bobagem, muitas leis lá dentro, muitas regras a serem cumpridas. Sai algumas brigas lá dentro, roubo é raro, mas sai também. Tem que chegar, tomar banho, depois tomar uma sopa muito ruim. Às 21 horas tem que estar na cama para as 5 da manhã acordar e tomar um café que é uma bosta. Tudo isso por causa de uma cama, quer dizer, um beliche que dorme um em cima do outro. Se for assim eu prefiro mil vezes dormir na rua.

Pararealidade: Quando você fica doente, como você se trata? E como compra remédios?
Eu tenho uma cunhada que é aposentada. Ela foi enfermeira padrão do Hospital de Clínicas. Ela me leva ao médico quando preciso e compra os meus remédios porque ela ganha descontos.

Pararealidade: Como você se alimenta? De onde tira dinheiro?
Eu não sinto muita fome, porque a bebida tira um pouco da vontade de comer. Geralmente eu ganho cachorro quente por aí. Eu consigo dinheiro fazendo meus biquinhos, vendo radinhos, relógios, fones e pilhas. Compro tudo mais barato no centro e revendo.


Pararealidade: Você poderia me contar uma experiência ruim que você viveu nas ruas?
São várias. Tenho uma marca na vista porque eu briguei com três cabeças de uma só vez. O cara tentou colocar a faca dentro do meu olho, só que pegou embaixo.

Pararealidade: E porque vocês estavam brigando?
V-U-L-N-E-R-A-B-I-L-I-D-A-D-E-S, ou seja, a cachaça fluiu, todo mundo ficou florido no caso, e eu fui tão macho que queria brigar com três.

Pararealidade: É verdade que os moradores de rua não tomam banho porque eles não querem que as pessoas se aproximem deles?
Não. Há moradores de rua que são relaxados e outros nem parecem que são. Mas há também a dificuldade do banho, principalmente no inverno. Como é que um morador de rua cheio de problemas, com frio, problemas no pulmão, friagem, vai tomar um banho gelado para ficar cheiroso. Nesses albergues é obrigado a tomar banho gelado. Então o morador de rua que fica no albergue, ele lava as axilas molha os cabelos só para dar uma enganada e poder dormir. Tem muita coisa errada aí que o pessoal finge que não vê. Vivemos em um mundo esquisito. Não é que não queremos que as pessoas se aproximem da gente, é que o pessoal (moradores de rua) ficam inibidos por causa do cheiro e da bebida. Tem moradores de rua que deixam de pegar ônibus e vão a pé para os lugares porque quando entram nos ônibus as pessoas ficam olhando e falando do mau cheiro. Aí nos isolamos na cabeça de vocês. Não é fácil.

Pararealidade: Como você se mantém informado?
Eu vejo Tv nos bares ou nas lanchonetes por onde passo. Eu gosto muito de ler o “Diarinho”, até porque ele me mantém informado, é bem baratinho e traz varias curiosidades.

Pararealidade: Você já leu algum livro?
Sim. O que mais me marcou foi Os Sobreviventes nos Andes. Um avião caiu nas cordilheiras dos Andes e o pessoal queimava dinheiro para se aquecer. Uns comiam os outros como canibais. Muito legal.

Pararealidade: Qual foi o filme que mais te marcou?
Tropa de Elite. Eu achei muito violento, não é bem assim que as coisas funcionam. Aprendi muitas coisas com esse filme. Uma delas é que cobra (marginais) não se fere, se mata, porque morto não fala.

Pararealidade: O que você carrega dentro da sua mochila? Dentre tantas coisas deixadas para trás como você selecionou essas?
Carrego o material que eu vendo. Na verdade dou prioridade e sempre carrego o que vou precisar mais no meu dia-a-dia. Coisas de primeira necessidade: dinheiro, documentos, algumas roupas. Tem também esse pedaço de carne crua que eu ganhei hoje de manhã de um açougue.

Pararealidade: Por que você não volta a trabalhar e ter um salário fixo?
Não tenho condições de assumir compromissos se eu não vou cumpri-los. Principalmente se eu trabalhar com amigos, não quero decepcionar ninguém.

Pararealidade: Você tem alguma religião?
Eu gosto muito da Espírita. É a mais branca, a mais bonita, a mais aberta e é a que melhor esclarece minhas dúvidas. Acredito muito em Deus também.
Pararealidade: Você tem algum medo de morar nas ruas?
O único medo que eu tenho é de pegar doenças. Uma conhecidíssima é a Aids. Tenho muito medo de me contaminar.

Pararealidade: Você é feliz?
Mentalmente e ideologicamente eu sou feliz. Não tenho horário, não tenho compromisso. Isso são duas coisas que eu admiro na vida. Eu sou livre.
Pararealidade: O que você acha da sociedade de hoje?
Em geral vivem em umas tocas, ninguém mais se relaciona com ninguém. Todo mundo tem medo de sair de casa. Deveriam se socializar mais. Isso não tem mais jeito, eles mesmos criaram esse mundo. Um mundo de grade, uma cadeia, uma cadeia urbana. A sociedade de hoje vive em cadeias urbanas. Eu me sinto feliz de não participar disso. Eu tenho o livre arbítrio de ir e vir à hora que eu quiser. Eu não preciso me preocupar com uma chave para entrar em um apartamento.

Pararealidade: Você tem algum sonho que gostaria de realizar ainda?
O que eu queria ter na vida agora com 50 anos eu já tive trabalhando. Sempre tive empregos bons, sempre entrei pela porta da frente. Já tive moto, carro, e um apartamento lindo no Menino Deus. A vida de hoje gira em torna da materialidade e eu não ligo mais para isso. Meu tempo, minha fase já passou. Vejo muita gente com dinheiro e que não é feliz, não vive a vida, não sai para jantar fora, é tudo uma rotina. Eles estão presos no mundo de grade deles.

* Fotos por Bruna Schuch.

domingo, 14 de setembro de 2008

Presídio feminino oferece curso universitário a detentas.


A penitenciária feminina Madre Pelletier é a primeira no Brasil a oferecer curso de ensino superior. As detentas e algumas agentes penitenciárias cursam serviço social. O curso é oferecido em parceria entre a superintendência de serviços penitenciários do Rio Grande do Sul (SUSEPE) e do centro universitário metodista – Instituto Porto Alegrense (IPA). O curso conta com a infra-estrutura própria e foi implantado em 2006, com 60 vagas distribuídas entre 23 internas com ensino médio completo, e 48 funcionários da SUSEPE. Não existe diferenciação do curículo do curso das detentas para o das funcionárias. O modo de ingressar no curso é através do vestibular, seu objetivo é pesquisar como a educação age como ferramenta de inclusão.

Esse é o caso de Anajara Gomes, que cumpre pena de 24 anos por latrocínio e está cursando o ensino superior. A detenta nunca havia imaginado que fosse possível cumprir sua pena e ao mesmo tempo ter a oportunidade de sair formada e pronta para garantir os direitos de outros cidadãos.

O IPA oferece todo o material necessário para que as detentas possam estudar dentro da penitenciária. Desde livros, xerox, até uma pequena biblioteca. As aulas são todos os dias da semana no turno da noite. Dentre as disciplinas do curso estão: movimentos sociais, teoria e economia política, filosofia, sociologia e responsabilidade social. Nos próximos meses será realizado no instituto Porto Alegrense a semana acadêmica, podendo haver chances de participação das alunas do Madre Pelletier. Diante disso Anajara mostra-se emocionada e feliz com a possibilidade de sair pela primeira vez depois de 4 anos e ver com os seus próprios olhos as grandes mudanças ocorridas na sociedade: _ “Tenho medo da reação das pessoas quando souberem que eu sou uma presidiária, mas espero que dê tudo certo”. “ Quando eu entrei aqui, deixei para trás meu celular que era um tijolo, agora parece que existe um que eu posso ver até a outra pessoa na tela”. “ O que é essa onda de mp3??não faço a mínima noção do que seja isso...entram várias músicas em um lugar só né?”.

Quando questionada se havia preconceito dentro da sua sala de aula por parte de funcionários e professores, Anajara respondeu que no início havia uma certa desconfiança, mas que depois de um tempo as pessoas foram se acostumando:_ “Não existe nenhum tipo de preconceito, todos são tratados iguais. No momento que a gente entra na sala de aula não existe apenados e funcionários e se existir alguma coisa é da sala de aula prá fora". "Fora da sala de aula eu não tenho queixa de nada, os funcionários aqui dentro são autoridades, se souber respeitar aquela autoridade vai ter o tratamento que merece".

Cebolinha, assim chamada dentro do presídio, pois trocava a letra “r” pela letra “l”, acredita que tem condições de conseguir se reintegrar na sociedade após cumprir sua pena. Depois que começou a fazer o curso dentro da penitenciária sua vida mudou completamente. Virou uma pessoa mais concentrada e com vontade de lutar para ser alguém com um futuro promissor. Quando sair para o regime semi aberto concebido depois de cumprir 4 anos da sua pena em regime fechado, ela terá um ideal de vida para lutar. Seu sonho é ajudar as pessoas e afirma: _“Nunca mais quero voltar à vida do crime. Se um dia eu voltar para o sistema carcerário será por ordem da autoridade, por delito jamais. Tenho convicção e certeza que eu posso sair daqui e ser uma boa profissional, vou ajudar a sociedade e não mais prejudicar".

O presidente da comissão de cidadania e direitos humanos da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, o deputado Marquinho Lang afirma que: _ " Se as detentas não tiverem uma educação, elas automaticamente irão voltar para a vida do crime. Esta é fundamental para elas conseguirem oportunidades e empregos quando acabarem suas penas".

* O Instituto Porto Alegrense (IPA) foi procurado, através da coordenação do curso, mas não quis manifestar-se.

* Fotos por Bruna Schuch.